INTRODUÇÃO
Existe uma característica no ser humano que o distingue dos demais seres vivos: a liberdade de escolha, o chamado livre arbítrio. Esta é uma característica única no ser humano: ter a capacidade para escolher o que fazer, como fazer ou optar por não fazer determinada acção. Os animais não têm esta capacidade. Eles nascem programados e agem de acordo com o seu instinto.
Esta liberdade de escolha é um grande poder que temos ao nosso dispor. Mas como sabemos, um grande poder requer uma grande responsabilidade. O que fazer com esta liberdade de escolha? Mal acordamos surgem as dúvidas: “Será que me levanto ou durmo mais um pouco? Vou primeiro à casa de banho ou vou à cozinha? Tomo o pequeno-almoço ou não? Como cereais ou pão? Vou para o trabalho de carro ou de transporte?” Etc., etc.
Ao longo do dia o nosso poder de escolha é constantemente posto à prova. Obrigatoriamente temos que tomar decisões, uma vez que não vimos programados como os animais. E é nesses momentos de escolha que surgem os conflitos. Só existe conflito porque existe uma liberdade de escolha. Os animais e as plantas não têm este tipo de problemas. Eles não enfrentam o dilema da escolha. Um leão não se pergunta: “Devo comer a gazela ou beringelas?”. Ele já vem programado. Os animais, bem como as plantas, agem de acordo com a ordem universal e portanto, não há como agirem incorrectamente.
No caso do ser humano é diferente, nós podemos escolher. E, infelizmente para muitos de nós, é um grande problema ter este livre arbítrio. Chegamos a preferir ser como os animais, só para não termos que enfrentar aquelas situações difíceis de escolha quando, na realidade, é um grande privilégio ter esta liberdade. É uma bênção poder questionar, analisar e escolher. Mas uma questão pertinente permanece: como usar a minha liberdade de escolha? Em que devo basear-me para tomar as minhas decisões?
VIVER DE ACORDO COM O DHARMA
Uma vez que temos liberdade de escolha, as acções que decidimos realizar podem correr mal. Só quando existe escolha é que pode haver certo e errado. Num animal ou planta nada pode correr mal pois eles já vêm programados. Mas no nosso caso, como podemos escolher, tem que existir algo que paute as nossas acções. Esse algo é o dharma, uma vida de valores, uma vida ética. Como seres humanos, necessitamos de certas normas que guiem as nossas acções. Como não somos pré-programados, os fins não podem justificar os meios. Nós temos uma escolha em ambos os casos, nos fins e nos meios.
Os valores éticos baseiam-se na apreciação do senso comum de como queremos ser tratados pelos outros.Esperamos que o mundo, nomeadamente os demais seres humanos, se comportem de uma determinada forma. Se esperamos isso, também nós deveríamos fazer o mesmo. Se não queremos que nos causem dano também não devemos causar dano aos demais. Se queremos que nos falem a verdade, devemos falar a verdade.
Tudo o que esperamos dos outros são os valores que também nós devemos aplicar nos demais. Isto chama-se bom senso. E por isso os valores são universais, não dependem do país, cultura ou religião. Eles são válidos para todos os seres humanos.
Apesar dos valores serem universais não significa que estes padrões sejam absolutos. Existem situações em que os valores estão sujeitos a interpretação. Por exemplo, magoar uma pessoa é contra o valor universal da não-violência. Mas no caso de um cirurgião que tem de usar o bisturi no paciente para o salvar da morte, a sua acção não é interpretada como errada. Este tipo de situações, no entanto, não afecta o nosso valor básico pela não-violência a nós mesmos e por extensão, aos demais.
Não precisamos de estudar as escrituras para sabermos o que é correcto e incorrecto, dharma e adharma. O nosso problema não é ignorância dos valores, mas sim a sua assimilação e aplicação. Temos claro como queremos que o mundo nos trate, mas em relação à forma como tratamos o mundo já é mais subjectivo, pois muitas vezes os nossos gostos e aversões (rāga/dveṣa), falam mais alto que os valores. Por vezes, os nossos gostos e aversões estão alinhados com o certo e o errado. Nesse caso não há problema. Mas muitas vezes não. E nessas alturas, as escrituras do Yoga dizem-nos claramente para seguirmos aquilo que é correcto, o dharma, mesmo que não seja do nosso agrado pessoal imediato.
Como seres humanos representamos vários papéis na sociedade. E cada papel implica uma responsabilidade, um dever. Chamamos também a isto de dharma. Como membro de uma família temos um dever, como trabalhador outro dever, como cidadão outro. Uma pessoa com os valores bem assimilados, uma pessoa “dhármika”, é aquela que cumpre sempre o seu dever, independentemente do resultado lhe ser mais ou menos favorável, em termos de gosto pessoal. Se somos incapazes de ir contra o nosso dever, isso é sinal de maturidade espiritual.
A IMPORTÂNCIA DOS VALORES
Sempre que violamos algum valor criamos uma divisão dentro de nós. Surge uma divisão entre aquele que pensa e aquele que age. Cria-se uma dupla personalidade: aquele que sabe o que é correcto e aquele que age incorrectamente. Com esta divisão interna não poderemos chegar a lado nenhum, muito menos à paz mental.
Sem valores não há paz mental. Uma vida de valores pode não me trazer riqueza, mas sem eles nunca terei paz mental. Posso ter uma belíssima casa, com todos os luxos e mesmo assim não estar confortável comigo mesmo. Sou rico mas estou desconfortável, inquieto comigo mesmo. Só uma vida de dharma me proporcionará essa paz. E só com essa paz mental poderei aprender Vedānta 1.
O Svāmi Dayānanda diz-nos mesmo que “a descoberta e assimilação dos valores, por si só, constituem a preparação da mente [para o autoconhecimento]. Tudo o resto é secundário.”
Para além do benefício pessoal de viver segundo o dharma, existe também o benefício colectivo. Se todas as pessoas respeitarem e aplicarem os valores no dia-a-dia, o resultado é uma sociedade pacífica e harmoniosa.
OS VINTE VALORES DA BHAGAVAD GĪTĀ
No décimo terceiro capítulo da Bhagavad Gītā, Kṛṣṇa ensina a Arjuna vinte importantes valores, vinte importantes qualidades mentais a serem desenvolvidas.
Apesar destes valores não poderem ser chamados de ātma jñānam (conhecimento do Eu), nem um homem de valores poder ser chamado de sábio, eles são muito importantes no processo para o autoconhecimento. Por essa razão Kṛṣṇa os chama de jñānam, palavra que literalmente significa conhecimento. São figurativamente chamados de jñānam porque com estes valores o autoconhecimento fica muito acessível.
Os valores sozinhos não trazem o autoconhecimento, mas são necessários porque sem eles, o meio principal, Vedānta, não funcionará. Com estes valores presentes, ātma jñānam é fácil. Sem eles, impossível. O ensinamento escutado não é assimilado. E mesmo que a pessoa sem estes valores estude Vedānta por muito tempo, o ensinamento entra mas não permanece, não se internaliza, é apenas um conhecimento académico.
Os versos da Bhagavad Gītā que descrevem os vinte valores são os seguintes:
amānitvamadambhitvam, ahiṁsā kṣāntirārjavam
ācāryopāsanaṁ śaucaṁ, sthairyam ātmavinigrahaḥ
indriyārtheṣu vairāgyam, anahaṅkāra eva ca
janmamṛtyujarāvyādhi-duḥkhadoṣānudarśanam
asaktiranabhiṣvaṅgaḥ, putradāragṛhādiṣu
nityaṁ ca samacittatvam, iṣṭāniṣtopapattiṣu
mayi cā anyayogena, bhaktiravyabhicāriṇī
viviktadeśasevitvam, aratirjanasaṁsadi
adhyātmajñānanityatvaṁ, tattvajñānārthadarśanam
etajjñānam iti proktam, ajñānaṁ yadato’nyathā
(Bhagavad Gītā, capítulo XIII: 8-12)
Ausência de vaidade; ausência de pretensão; não-violência; aceitação; rectidão; serviço ao professor; pureza; perseverança; autocontrolo; desapego em relação aos objectos dos órgãos dos sentidos; ausência de egoísmo; ser consciente das limitações da vida: nascimento, morte, velhice, doença e dor; ausência de dependência; ausência de afeição excessiva em relação ao filho, mulher, casa, etc.; constante equanimidade diante do desejável e do indesejável; firme devoção a Deus com atenção não dividida; frequentar um lugar retirado; ausência de grande desejo por companhia; constância no conhecimento centrado no Eu; ter em vista o propósito do autoconhecimento – tudo isto é declarado como conhecimento (jñānam) e o que é oposto a isto é ignorância (ajñānam).
1. Dentro da Tradição Védica, Vedānta é o meio de conhecimento que, através do uso adequado da palavra, revela a natureza do ser essencial que eu sou. Vedānta funciona na forma tríplice de śravaṇam, escutar o ensinamento (de forma sistemática, por um longo período de tempo, sob a orientação de um professor competente), mananam, remover as dúvidas sobre aquilo que foi escutado e nididhyāsanam, assimilação do ensinamento.