Os valores da Bhagavad Gītā (6 ao 10)

Os valores da Bhagavad Gītā

ĀCĀRYOPĀSANAṀ

Serviço ao professor

Literalmente a palavra ācāryopāsanaṁ significa meditação (upāsanaṁ) sobre o professor (ācārya). Serviço, entrega e reverência ao professor são também sinónimos de ācāryopāsanaṁ, e este é o sentido que Kṛṣṇa dá ao termo quando o ensina a Arjuna.

Segundo a tradição védica, qualquer professor, de qualquer campo de conhecimento, deve ser valorizado e respeitado. E muito mais um professor de Vedānta, por duas razões:

  • Reverenciamos o professor como os śāstras, as escrituras.

Como estudantes de Vedānta, o nosso principal objectivo na vida é o autoconhecimento, sabermos quem somos, o que é ātmā, o Eu. Ātmā não está disponível para ser conhecido através dos órgãos dos sentidos porque ātmā é o próprio sujeito por detrás dos órgãos dos sentidos. Não pode ser conhecido através dos órgãos dos sentidos, não pode ser experimentado, pois nesse caso perderia a qualidade de sujeito para passar a ser objecto. Nem a ciência nem a meditação são meios de conhecimento para ātmā. Mesmo quando fazemos a meditação de assimilação, conhecida como nididhyāsanam, apenas lembramos e aplicamos aquilo que aprendemos durante o período de śravanam e mananam.

Desta forma, precisamos das escrituras, cujas palavras funcionarão como um espelho que nos revelará a nossa natureza real. Em Vedānta não experienciamos nem queremos experienciar ātmā, porque já somos ātmā. E é graças a ātmā, aquilo que somos realmente, que tudo pode ser conhecido e experienciado. Assim, o método de ensino tem que ser de tal forma que não nos deixemos cair nesta busca por uma experiência de ātmā. Nós já somos aquilo que buscamos.

Por isso mesmo precisamos de um professor, de um guru (literalmente aquele que remove a escuridão, a ignorância) que nos guie, um guia externo que saiba manejar as palavras dos śāstras, para que consigamos perceber o seu ensinamento, sem dúvidas. O śāstra torna-se num meio de conhecimento capaz de revelar a verdade apenas quando é manejado por um ācārya. O professor torna-se tão importante como as escrituras e é por essa razão que o estudante reverencia o professor tal como reverencia o ensinamento.

 

2 – Reverenciamos o guru como Īśvara, o Todo.

Se todos somos īśvara, qual a diferença entre o guru e as outras pessoas? Nas outras pessoas, a ignorância não as permite perceber que são īśvara. No caso do guru, este já removeu toda a ignorância acerca de si mesmo. Assim, olhamos para o guru como īśvara. Ācārya upāsanaṁ e īśvara upāsanaṁ são semelhantes.

 

Esta reverência ao professor e consequente atitude de entrega e de serviço não significa uma submissão cega. Quando, humildemente reverenciamos e nos entregamos ao professor, com o objectivo de recebermos o seu ensinamento, devemos primeiro confirmar se esse professor é genuíno. O professor genuíno é aquele que tem um conhecimento firme e claro da verdade sobre si mesmo e que vive aquilo que ensina. Este professor não necessita de nada. Ele já é livre e independente. Sendo independente, não depende do serviço do aluno. Só nesta condição poderemos entregar-nos por completo ao professor, sem medo de sermos explorados.

Mais do que acções em serviço do professor, ācāryopāsanaṁ é uma atitude, uma disposição para servir. Interiormente estamos prontos para realizar qualquer serviço, com vontade e alegria, pois sabemos que o único beneficiário de tal serviço somos nós mesmos. O resultado de ācāryopāsanaṁ é uma mente mais humilde, mais madura e aberta ao autoconhecimento.

A relação com o professor é assim resumida pelo Svāmi Paramārthānanda: encontrar o guru, reverenciá-lo, escutar o ensinamento, internalizar o ensinamento e depois desapegar-se do guru”. Este é o processo.

 

ŚAUCAṀ

Pureza

Śaucaṁ significa limpeza ou pureza. Esta pureza implica também ordem e arrumação. Segundo as escrituras temos quatro níveis de śaucaṁ:

1º Pureza daquilo que nos rodeia

Isto inclui as nossas roupas, casa, local de trabalho e objectos que possuímos. Tudo isto deve estar não só limpo mas também arrumado e em ordem. A nossa casa pode estar impecavelmente limpa mas, devido à desarrumação, podemos ter que procurar por todas as coisas. O Svāmi Paramārthānanda aconselha a ter “um sítio para tudo e tudo no seu sítio”.

 

2º Pureza do corpo

Manter o corpo limpo por fora mas também por dentro, com uma alimentação saudável e a prática de exercício físico.

Manter a limpeza externa (do corpo e daquilo que nos rodeia) é uma disciplina diária importante pois produz um estado de atentividade na mente.

 

3º Pureza do discurso

A pureza ao nível do discurso implica quatro coisas:

  • Anudvegakaraṁ – discurso não-violento, que não magoe o outro.
  • Satyaṁ – discurso verdadeiro. Não mentir nem partilhar informações duvidosas.
  • Priyaṁ – discurso agradável, polido, gentil.
  • Hitaṁ – discurso que beneficie quem nos escuta.
 

4º Pureza da mente

Da mesma forma que todos os dias o nosso corpo, roupas e casa se sujam, também a mente adquire impurezas nas diversas transacções que estabelecemos com o mundo. Pensamentos como a raiva, ciúmes, inveja, medo, egoísmo, culpa, orgulho, etc., poluem a mente e portanto torna-se necessário purificá-la diariamente. Nesse sentido, a prática de Haṭha Yoga(incluindo a meditação, nomeadamente a meditação de valores) e os rituais como a pūjā, cânticos védicos e outros, têm um papel fundamental na purificação da mente.

 

STHAIRYAM

Perseverança

Perseverança, firmeza de estabilidade (niṣṭha), persistência, constância ou compromisso são sinónimos da palavra sthairyam.

Uma das maiores dificuldades que todos enfrentamos quando decidimos realizar uma tarefa é completar essa tarefa. Não raras vezes falta-nos a determinação e a persistência para terminá-la. Podemos começar a tarefa com grande entusiasmo, com a garra de um leão, mas esse entusiasmo eventualmente acaba por desvanecer-se, porque é necessário um grande esforço para completar a tarefa ou porque nos distraímos com outras coisas.

O Svāmi Dayānanda ensina que “um esforço firme, da parte de alguém, em relação a qualquer objectivo ao qual ele se tenha comprometido a realizar ou em relação a quaisquer deveres que a própria responsabilidade impõe, é sthairyam”.

Assim, temos dois tipos de compromisso: compromisso com respeito às nossas próprias acções (karma niṣṭha) e compromisso com respeito aos nossos deveres como cidadãos, como pessoas de família, como trabalhadores ou como amigos (dharma niṣṭha).

Karma niṣṭha significa acabar aquilo que decidimos começar. Se, impulsivamente decidimos começar uma tarefa, o mais provável é que desistamos a meio. É muito importante pensar bem antes de agir, avaliando quer as nossas capacidades quer a exigência da tarefa em si. Uma vez que decidimos empreender tal tarefa devemos saber que não existem tarefas livres de obstáculos. Maiores ou menores, cedo ou tarde, os obstáculos acabarão por aparecer. E nesses momentos é necessária uma grande persistência para ir até ao fim.

Dharma niṣṭha é o compromisso para com os nossos deveres. Como seres humanos, representamos vários papéis na sociedade e cada um desses papéis implica responsabilidades, deveres. Como membro de uma família tenho certos deveres a cumprir, como trabalhador e membro de uma sociedade, outros. Dharma niṣṭha é colocar os nossos deveres à frente dos nossos gostos e aversões particulares e fazer por cumpri-los.

Para o autoconhecimento, o mais alto dos objectivos que uma pessoa pode aspirar, é necessário um comprometimento total. Esse autoconhecimento é o resultado de um longo processo de estudo, remoção de dúvidas e integração daquilo que foi escutado. E isto requer uma grande disciplina e constância, diárias.

 

ĀTMA VINIGRAHAḤ

Autocontrolo

Normalmente a palavra ātmā significa “Eu”, o Self, mas neste contexto adquire um significado diferente. Aqui, ātmā refere-se à mente. Vinigrahaḥ significa restrição, controlo, mestria ou comando. Assim, ātma vinigrahaḥ significa autocontrolo ou comando sobre a mente.

A mente é volúvel por natureza. O corpo da mente são os pensamentos, que mudam a cada instante. Querer mudar a natureza da mente é uma tarefa inglória. Querer que a mente pare, querer rejeitar determinados pensamentos ou mesmo eliminá-los da mente, só torna as coisas piores. A mente revolta-se e fica ainda mais perturbada.

Sendo assim, ātma vinigrahaḥ não é anular a mente ou reprimi-la mas sim saber conduzi-la para aquilo que nos interessa. Tal como utilizamos um carro (um veículo), conduzindo-o na direcção que pretendemos, devemos também saber conduzir a mente (um outro veículo) em vez de sermos conduzidos por ela, por suas fantasias e distracções.

Para termos um comando sobre a mente, necessitamos de estar constantemente alerta, atentos aos nossos pensamentos. Se somos conscientes do que está a acontecer na mente, temos sempre uma escolha sobre a mente. Quando vigiamos a mente, conseguimos antecipar-nos às suas reacções perante situações inesperadas. Conseguimos controlar as nossas respostas às adversidades. Conseguimos dar-nos conta quando a mente se distrai e divaga, evitando alimentar pensamentos supérfluos, que não nos trazem nenhum crescimento interior. Só assim seremos capazes de agir deliberadamente no mundo, com intenção e com propósito.

Nós não sabemos qual será o próximo pensamento a surgir na mente, mas podemos escolher entreter ou não esse pensamento. Como diz o Svāmi Paramārthānanda: “o tipo de mente que temos depende do tipo de pensamentos que entretemos”. Se alimentarmos pensamentos elevados, de acordo com os valores, de acordo com o caminho que decidimos empreender em direcção ao autoconhecimento, o resultado será uma mente madura, forte, com capacidade para aguentar os altos e baixos da vida.

 

INDRIYĀRTHEṢU VAIRĀGYAM

Desapego em relação aos objectos dos órgãos dos sentidos

Indriya significa órgãos dos sentidos e artha, objecto. Vairāgyam significa desapego. Para entendermos o que é o desapego é fundamental entendermos o que é apego. Apego significa depender do mundo (objectos, pessoas, experiências) nomeadamente a nível psicológico, para ter segurança, paz e felicidade. Quando conseguimos discernir que o mundo não serve esse propósito deixamos de depender dele, deixamos de buscar nele a felicidade ou segurança e isso é desapego.

Ao percebermos que o mundo não nos pode trazer felicidade, facilmente podemos cair no extremo oposto: criar aversão em relação ao mundo. Devemos evitar os extremos. Percebemos que o mundo e os objectos têm a sua beleza e são manifestações de Īśvara. Portanto, podemos usá-los e desfrutá-los. Mas, ao mesmo tempo, lembramos que tudo isto que experienciamos está sujeito a mudar e a acabar. Devemos saber desfrutar da presença dos objectos mas saber também lidar com a sua ausência.

Desapego é estar preparado mentalmente para perder qualquer coisa (qualquer objecto sensorial) a qualquer momento, porque sabemos que tudo aquilo que experienciamos tem um início e um fim.

Muitas vezes o desapego é entendido como não ter desejos. O problema não é desejar, o problema é ser governado pelos desejos, ser levado a fazer qualquer coisa para realizar os desejos esquecendo, muitas vezes, os nossos valores pelo que é correcto e adequado.

Desapego é olhar para os objectos tal como são, sem emprestar a nossa subjectividade, sem projectar neles o poder de nos fazer felizes ou infelizes. Ver uma casa como uma casa e não como uma fonte de felicidade, ver o dinheiro como dinheiro, a pessoa amada tal como é e não como uma extensão de nós mesmos. Compreendemos que todas estas coisas podem trazer alegria ou tristeza ou um misto dos dois e que esses estados são transitórios, começam e acabam. Percebemos que em todo o ganho existe uma perda e que, depois de satisfazer um desejo, um novo desejo sempre surge. Entendemos que tudo aquilo que é observável é limitado no tempo e espaço e por isso aquilo que nos pode proporcionar é também limitado.

Nas palavras do Svāmi Paramārthānanda: “Desapego não é abandonar o mundo mas sim abandonar a ilusão de que é através do mundo e de seus objectos que alcançaremos a felicidade”. Desapegar-me não significa deixar os meus afazeres, deixar as responsabilidades que tenho com a minha família, amigos e trabalho e isolar-me numa montanha. Isso é fugir. Se preciso fugir do mundo para resolver os meus problemas é porque ainda não os resolvi e a única forma de resolver os problemas advindos das relações que estabeleço no mundo é, no mundo, resolver esses problemas. Senão, para onde eu for, os problemas irão comigo.

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