O Haṭha Yoga e a cultura védica

yogi seal

por Pedro Kupfer

1) O problema de datar o Hatha Yoga

Esta é ao mesmo tempo uma declaração de amor pelo Hatha Yoga e uma defesa dos aspectos esquecidos dessa antiga prática. Estamos acostumados a ouvir e aceitar sem maiores questionamentos que o Hatha Yoga, de origem tântrica, é bem mais recente e está completamente separados dos sistemas anteriores a ele, como o Raja Yoga de Patañjali, o Jñana Yoga, o Karma Yoga, o Mantra Yoga, etc., como se esses sistemas pertencessem a um universo totalmente diferente do contexto em que o Hatha nasceu.

Existe consenso em torno da idéia que o Hatha se desenvolveu no período pós-clássico da história indiana, entre os séculos IX e X desta era, sendo portanto posterior ao Yoga clássico codificado pelo sábio Patañjali nosAforismos do Yoga. Assim, a origem do Hatha estaria vinculada ao aparecimento da linhagem dos 64 siddhas (‘seres perfeitos’), que inicia com os mestres Matsyendranatha e Gorakshanatha, do norte da Índia.

Talvez esteja na hora de revisarmos mais profundamente essas conjecturas. O fato é que o Hatha desde sempre pertenceu, esteve vinculado e evoluiu junto com a tradição védica. Para compreendermos as profundas implicações desta afirmação, seria necessário fazermos uma profunda reflexão sobre a questão da origem deste sistema e, quem sabe, reescrevermos sua história. Ou, pelo menos, parte dela.

As mesmas dificuldades que enfrentamos ao estudar a história antiga da Índia surgem quando tentamos compreender o processo de formação do Hatha: os yogis da antigüidade, assim como os outros sábios indianos da época, não estavam preocupados com cronologias e medições do tempo.

Isso torna frustrante qualquer tentativa de estabelecer a idade real do conhecimento, já que as figuras históricas de que se têm notícia aparecem sempre transfiguradas pelo mito e a datação das obras literárias é totalmente vaga. Isto é especialmente verdadeiro em relação àquele conhecimento vinculado com a busca da auto-realização. Nos textos antigos, todos os autores remetem-se ao mais velho, ou ao mito, ou assinam com o nome do próprio mestre.

Só para ficarmos com um exemplo dos muitos que encontramos na cultura hindu, a grande tarefa dos geógrafos indianos da época consistia, não em medir ou descrever as caracterísiticas físicas ou demográficas daquela região ou daquela civilização, mas em elaborar um sistema que explicasse que a estrutura física da Terra espelhava a harmonia maior do macrocosmos. Desta forma, a Terra era vista como um hemisfério sustentado por quatro enormes elefantes apoiados sobre uma tartaruga gigante que flutuava sobre o oceano das águas causais. Sobre o hemisfério ficava Jambudvipa, ‘a ilha da macieira’, organizada na forma de um mandala em torno do eixo do mundo, o monte Meru, morada do deus Shiva que, por sua vez, era rodeado por outras sete montanhas.

Voltando à idade real do Hatha, existem estudiosos e praticantes que preferem ver esta disciplina como parte de uma tradição cujas raízes estão ligadas às primeiras Upanishads, antigos textos do segundo milênio a.C.. Nesta perspectiva, arriscamo-nos a afirmar que o Hatha Yoga faz parte da tradição vêdica e está totalmente integrado com ela. Nos aprofundaremos sobre a conexão entre o Hatha e as Upanishads na segunda metade deste texto.

 

2) Uma evidência (pouco conhecida) que mostra que os asanas são mais velhos do que se imagina

No ano 2000, tive o privilégio de acompanhar Sri K. Pattabhi Jois numa visita ao mosteiro de Shringeri Math, nas montanhas do interior do estado de Kerala, sul da Índia. Esse é um lugar muito sagrado para todo hindu praticante, por ser até hoje a sede onde moram e trabalham os continuadores do trabalho de Adi Shankaracharya, o grande iluminado, filósofo, poeta, profeta e reformador do hinduísmo. Chegando lá, descobri, para meu encanto, que dentre os motivos que decoravam as paredes de pedra do templo maior, havia uma vasta série de pequenas, belíssimas e detalhadas esculturas de yogis praticando asana.

Esse foi o único momento em minhas viagens em que realmente lamentei não carregar uma câmera fotográfica. A acuidade da observação dos escultores era impressionante: para meu olho bem treinado de asanista, aquilo era um verdadeiro presente. Apareciam nos painéis, que se estendiam, camadas sobre camadas na parede oeste do templo, todas as posturas clássicas do Hatha, desde as mais conhecidas até algumas tão complexas que, apesar da clareza da escultura, ficava realmente difícil entender o que oyogi estava fazendo.

Esse templo foi construído enquanto o grande filósofo Adi Shankaracharya estava vivo, ou seja que data, na estimativa mais prudente, do século VIIId.C.. Isso nos mostra que ele, e conseqüentemente, a prática de asana do Hatha, são muito mais antigos que os textos atribuídos a Matsyendra, Goraksha e os demais yogis que preservaram essa tradição no norte da Índia (a partir dos séculos IX e X d.C. e até o aparecimento dos textos clássicos que foram preservados, como a Hatha Yoga Pradipika e aGheranda Samhita, que datam do século XV).

Acredito que, para chegar no grau de sofisticação técnica registrado nessas esculturas e para que essa prática de asana tenha sido usada como elemento ao mesmo tempo decorativo e instrutivo nos painéis de pedra do templo, ela era certamente muito mais antiga que a própria construção. Os sthapatis(arquitetos escultores) nunca iriam escolher tais esculturas se elas não fizessem parte do cotidiano do povo ou, pelo menos, das práticas espirituais dos sábios que freqüentavam o templo.

 

3) Shvetashvatara Upanishad: as raízes mais antigas do Hatha Yoga

Se, por outro lado, continuarmos nossa procura pelo Hatha Yoga nas Upanishads, iremos nos encontar com algo muito parecido com ele na Shvetashvatara, a ‘Upanishad do Cavalo Branco’ (shveta = ‘branco’, ashva = ‘cavalo’), uma das primeiras e mais importantes. Vejamos alguns poucos trechos deste shastra:

‘Mantendo o corpo firme, como as três partes eretas [tronco, pescoço e cabeça], o sábio dirige os sentidos e a mente ao interior do coração. Brahman é o barco em que ele atravessa o rio do medo.’ (II:8).

‘Controlando sua força vital (prana), com seus movimentos controlados, o sábio inspira pelas narinas, com a respiração restringida. Livre de distrações, que ele controle sua mente, como o condutor controla os cavalos rebeldes.’ (II:9).

‘Não conhece doença, velhice nem sofrimento aquele que forja seu corpo no fogo do Yoga. Atividade, saúde, libertação dos condicionamentos, circunspeção, eloqüência, cheiro agradável e pouca secreção, são os sinais pelos quais o Yoga manifesta seu poder.’ (II:12-13).

O primeiro parágrafo faz clara alusão à importância do alinhamento postural durante a prática de Yoga. Uma das maneiras mais eficientes de se manter o a conexão com o coração mencionada no texto, é justamente cultivando-se uma postura ereta e relaxada. A segunda citação deixa clara a conexão entre pensamento e respiração, outro dos temas fundamentais do Hatha. Essa conexão aparece de forma clara na Hatha Yoga Pradipika(II:2): ‘Enquanto a respiração (prana) for irregular, a mente permanecerá instável; quando a respiração se acalmar, a mente permanecerá imóvel e oyogi conseguirá a estabilidade. Por conseguinte, deve-se controlar a respiração [praticando-se o pranayama]’. Em outro trecho (IV:21), a mesma obra afirma: ‘Aquele que detém o alento, detém também o pensamento. Aquele que domina o pensamento, domina igualmente o alento.’

A idéia de ‘forjar’ o corpo no fogo do Yoga, presente no terceiro trecho aqui citado, é central à prática do Hatha, que busca a transubstanciação do corpo mortal em um corpo divino, com a dureza do diamante (vajra deha). Essa idéia está presente na Gheranda Samhita (I:24): ‘Assim como um jarro de argila crua, jogado neste mundo, o corpo decai rapidamente. É preciso endurecé-lo, forneando-o no fogo do Poder, para fortalecé-lo e purificá-lo’.

A ‘vitória’ sobre o sofrimento, a velhice e a morte também é um tema recorrente na literatura do Hatha. A lista dos benefícios advindos da prática que aparece na Shvetashvatara Upanishad é similar em tom e conteúdo a muitas outras que aparecem nas obras posteriores: ‘Quando se aperfeiçoa o Hatha Yoga, aparecem os seguintes sinais: agilidade física, brilho no rosto, manifestação da vibração sutil interior (nada), olhar penetrante e claro, saúde, controle do fluido seminal (bindu), aumento do fogo digestivo e total purificação das nadis’. Hatha Yoga Pradipika, II:78. Em outro trecho (III:30), esta mesma obra diz que certas práticas do Yoga ‘protegem contra a morte e a velhice, aumentam o fogo gástrico e proporcionam poderes paranormais (siddhis).’

 

4) Maitri Upanishad: decodificando o genoma do Yoga

Nossa próxima parada nesta jornada é a Maitri Upanishad, também pertencente ao primeiro e mais antigo grupo destes textos (existem Upanishads bem mais recentes). Maitri é o nome de um rishi, um sábio-yog-poeta que iniciou a linhagem chamada Maitrayaniya. A Maitri Upanishad preconiza a prática de um sistema completo de Yoga chamado Shadanga, ou ‘seis partes’, cujas técnicas são:

1)    pranayama (‘expansão da vitalidade’),

2)    pratyahara (‘abstração’),

3)    dhyana (‘meditação’),

4)    dharana (‘concentração’),

5)    tarka (‘questionamento contemplativo’) e

6)    samadhi (‘iluminação’).

Esta forma de expor o sistema, e as próprias práticas aqui descritas, evidenciam que a Maitri é uma espécie de antecipação de todo o Yoga posterior, desde o sistema óctuplo de Patañjali (Ashtanga Yoga, ou Yoga em ‘oito partes’) ao Sapta Sadhana (‘sete práticas’) da Gheranda Samhita. Essa organização das diferentes práticas do Yoga em etapas ou membros é comum a quase todos os sistemas técnicos e continua sendo usada até hoje, como uma tentativa de sistematizar a miríade de técnicas que o Yoga desenvolveu desde sua origem para facilitar o caminho dos praticantes.

Igualmente, a Maitri Upanishad contém descrições muito claras de algo bem parecido com o Hatha Yoga posterior. Vejamos: este texto fala sobre a íntima conexão que existe entre o fluxo da energia vital (prana) e a instabilidade da mente, um tema que foi abordado também naShvetashvatara Upanishad e que será retomado milênios mais tarde naHatha Yoga Pradipika, como já vimos anteriormente.

Da mesma maneira, a Maitri indica a prática de pranayama como o meio mais importante para se alcançar a estabilidade da mente. O texto chega a mencionar a prática que seria conhecida posteriormente como khechari mudra, que consiste em recolher e elevar a língua, pressionando-a no palato mole, como forma de evitar que o bindu, néctar lunar, se disperse a partir dosoma chakra. Esta é uma das principais práticas dos Yogas tântricos, como Hatha, Kundalini e Laya.

Acreditamos que a ausência do asana como uma técnica separada no sistema ensinado na Maitri Upanishad, não significa que o trabalho na postura fosse irrelevante, mas que ele se considerava óbvio.

Outro dos sistemas visíveis nesta obra é o Nada Yoga, que será retomado tanto na Hatha Yoga Pradipika como na Gheranda Samhita. É aqui que aparece por primeira vez a expressão Shabda Brahman (‘corpo sonoro do Absoluto’) para designar o mantra sagrado Om.

Podemos concluir então que a análise cuidadosa de textos como estes podem nos revelar muito mais do que imaginamos, não apenas sobre a idade real do Hatha, mas também sobre os profundos insights psico-espirituais que esta prática teve desde o início, e que nós não devemos esquecer, nem negligenciar em nossa prática cotidiana.

Pedro Kupfer é professor de Yoga e edita o site www.yoga.pro.br

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